Prepare-se! Esta é uma newsletter mais longa e profunda. Talvez para ficar pronta ela precisasse de ainda mais tempo, mais palavras e espaço. Entretanto esta foi a possível para esta semana. Então aí vai, e com este texto entregue considero que estou me entregando também. <3 <3 <3
Sensibilidade com o outro
Em meados dos anos 2000 eu tinha uma melhor amiga muito presente em minha vida. Digo "tinha" porque de alguma forma nossas vidas estão distantes. Mas ela não está distante da minha alma, nem a minha da dela. Quando nos encontramos somos capazes de rir ou de chorar juntas, sabemos o que a outra vai amar, pois é aquilo que também amamos. E vejo que ao falar sobre ela, ou sobre mim, começo a escrever no plural, como se ainda estivéssemos misturadas, pois talvez sejamos assim, mesmo longe uma da outra. O que ia contar é que naquela ocasião o pai dela faleceu. Quando nos falamos ela tinha acabado de receber a notícia no hospital em que ele estava internado. Eu estava na sala do meu pai, onde também eu trabalhava. Lembro que perguntei a ela: "Quer que eu vá até aí?" e ela me respondeu "não precisa, agora não adianta". Mas eu desliguei o telefone com a sensação de "eu preciso ir até lá, mesmo que não seja o momento, que ela não queira companhia agora..." Quando contei ao meu pai, lembro que ele me incentivou a ficar, aguardar um pouco, já que ela não tinha pedido e nem dito que queria. Mas era um chamado da minha alma, ou da alma dela, não sei. Então fui. Eu não me lembro como nos encontramos ou nos abraçamos, não lembro onde comemos durante aquele dia que atravessamos juntas, mas lembro que fiquei ao lado dela, até o momento do velório, onde compramos as primeiras flores e aguardamos todos que vieram se despedir. Aliás, eu não aguardei ninguém, eu apenas estava ali ao lado dela, lembro que segurei sua mão por horas e horas, enquanto muitas pessoas a cumprimentavam e a abraçavam, eu procurava a mão dela em cada oportunidade e só soltei sua mão após o corpo ser enterrado e todos irem embora, inclusive nós. Ao lado dela fomos as primeiras a chegar e as últimas a deixar o cemitério. Depois daquele dia, sinto que nossa amizade atingiu um outro nível de intimidade e amor partilhado. Nossos corações estabeleceram uma avenida que nos conecta até hoje.
Anos depois meu pai faleceu e ela retribuiu tudo, da mesma forma, passou uma noite e madrugada ao meu lado no hospital, enquanto o corpo era liberado. Esse tipo de apoio ninguém consegue pedir, ou por não ter forças, ou porque a cabeça está ocupada com o choque e não há espaço para pedir algo para si, quem tem sensibilidade simplesmente dá, entrega… Não sou a pessoa sensível que faz isso, pois para fazer precisa perceber a necessidade que nem a própria pessoa se deu conta. Aquela vez que pude dar para a minha amiga e isso me fez aprender o valor da atitude, tenho para mim que foi uma exceção, ou, pelo menos, um aprendizado recente. O pouco que fazemos no momento frágil do outro, é muito, é tudo. Entretanto estou contando um momento em que fui sensível, se fosse narrar a minha insensibilidade isto não seria um texto, mas um livro todo. Sério!
Na minha fragilidade
Semanas atrás, quando minha filha estava na UTI (contei na newsletter da semana passada), após a nossa primeira noite e madrugada, praticamente sem dormir, somente após o horário do almoço conseguimos um quarto (de UTI) e fomos transferidos da baia em que estávamos instalados no Pronto Socorro. Quando me preparava para descansar na poltrona do acompanhante, antes mesmo que eu tivesse forças para pensar em chamar alguém, recebi uma ligação da minha cunhada, irmã do meu marido, dizendo: "Como está a Nina? Podemos visitá-la? Você só me fala a hora que podemos ir até aí, porque já estou aqui na sua casa."
Ela mora em outra cidade, a 1h40 de distância (sem trânsito) da minha casa e do hospital em que estávamos. Naquela situação foi como se ela tivesse agarrado a minha mão, ou me carregado no colo, antes mesmo que eu pedisse ajuda. Ela só soube que estávamos ali porque minha sogra mora comigo e nos viu saindo para o Pronto Socorro, sem volta. Só ela sabia a gravidade, pois tinha sido a única pessoa para quem dei notícias, por motivos óbvios. Quando ouvi a voz dela à disposição para mim, para minha filha, meus olhos se encheram d'água. Só quem já viveu um apuro, sabe o que significa isso. Minhas irmãs, acho que já as tinha avisado, pela manhã, estavam longe, uma em outro país, outra em outra cidade, como minha mãe, apesar de um pouco mais perto. Esta última me ligou para pedir alguma coisa, como de costume a avisei onde estava para tentar desligar, como também faço, de costume, já que nosso diálogo ao telefone não consegue atravessar os inúmeros pedidos que ela me faz, de problemas para resolver em sua casa, fico sempre com a sensação de que ela me confundiu com um Serviço de Atendimento ao Cliente, ou acha que sou sua secretária [risos]. Nunca, ou quase nunca, lembra de perguntar como estou, então acabo também me acostumando a não perguntar como está, mas, mesmo assim, sei como ela está, pois ela diz junto com as inúmeras mil coisas, uma atrás da outra, sem espaço para eu respirar, e nem ela. No dia seguinte, me ligou para que eu pedisse um uber para que ela fosse, não me visitar, mas passear em um lugar que ela gosta. Eu, ali na UTI como acompanhante, cheguei a sussurrar "e você nem vem me visitar?", no caso minha filha que deveria ser visitada, mas como naquela hora a simbiose era tamanha, o que saiu da minha boca denunciou que também eu me sentia doente ou desamparada. Acho que ela nem ouviu ou entendeu e pensei que, se não tinha entendido, talvez não valesse a pena que eu explicasse. Fiquei em dúvida se sua visita seria boa para minha filha, e para mim também, ou se traria reclamações e a necessidade de atenção que eu não poderia suprir, pois era do que eu estava carente também. Acabei não falando nada, apenas sabendo que eu ainda precisava dormir e que mais tarde, como no dia anterior, receberíamos minha cunhada, com a filha, e minha sogra. As três já tinham vindo e ficado de voltar. Aliás, no dia anterior, quando viu a prima, minha filha teve uma melhora imediata do estado geral, sentou na cama, pediu para que a prima sentasse ao lado e juntas pintaram vários desenhos com lápis de cor e canetinhas. Minha filha sorria e olhava admirada para a prima mais velha, as duas riam e brincavam como sempre fazem. Em um quarto de hospital aquela imagem era um frescor.
A mãe
Mãe é uma entidade não humana, por quem mantemos altas expectativas, difíceis de serem cumpridas. Quando falo da minha mãe, vejo o quanto eu ainda a busco, ou espero dela algo que ela não pode me dar, já aprendi. Revelar como eu me sinto em relação a ela não significa que ela seja uma má pessoa, ou que não tenha sido uma mãe suficientemente boa, mas que a nossa relação me toca desta forma. Todos nós convivemos com pessoas que nos tocam de diferentes formas, isso independe do caráter delas e diz mais respeito a nós mesmos. Além disso, tratar deste assunto específico é entrar um pouco em temas como saúde mental, senilidade e envelhecimento. Quantos de nós não convivem com pessoas que não estão no equilíbrio pleno de suas faculdades mentais? Ou ainda pessoas que estejam afetadas por problemas ou transtornos de saúde que se refletem em alterações de humor, de temperamento, depressão, ansiedade, etc? Talvez você mesmo, lendo este texto possa se identificar com algum desses males. O que observo, é que mesmo com 44 anos vividos, na hora de olhar para minha mãe continuo esperando dela a cuidadora de uma criança pequena, porém também percebo que, muitas vezes, é o que ela também espera de mim. Então nossa relação entra em conflito. Ao notar isso (e compartilho porque pode ser uma chave para alguma relação sua também), preciso cuidar da relação que estabeleço com minha filha, para que nesta relação (que é mais do presente do que a que tenho com minha mãe, pois mesmo que atualizada está conectada ao passado) eu inaugure a mãe que eu sou, e não uma repetição ou uma oposição a mãe que eu tive (que é o caminho mais imediato que costumamos tomar). Para que eu não busque na minha filha também um afeto que eu não seja capaz de dar. Esta constante busca e descoberta é algo que persiste durante a vida. Uma busca de conexão e desconexão com a nossa origem. Pois é na conexão plena que podemos nos despedir de forma afetuosa do que existiu, curar feridas e desatar nós, para o que se espera que chamemos: liberdade. Estamos atados ao passado, então não somos livres. O vivido é como uma eterna e prévia "impressão" que teremos do futuro. Pois já está "impresso" em nós. É como ter um modelo, uma "fôrma", que atuará na nossa "forma" de olhar e captar "impressões" a respeito de tudo. Aceitar isso é uma travessia de libertação.
O que fui e o que sou
Comecei esse texto contando uma sensibilidade minha, um momento (quase filho único em minha vida) em que percebi a importância de uma atitude que eu tinha que tomar, isso seria sair da minha zona de conforto mas também adentrar numa relação mais sútil e rara com o outro.
Relembrei o quanto foi importante e emocionante para mim estar do outro lado e receber essa sensibilidade de alguém. Acredito que essas pessoas sensíveis são as que sempre sabem dar. Em geral são as mesmas pessoas. Precisamos aprender com elas. Eu preciso. Embora muitas tenham aprendido a sensibilidade pela dor, assim como costuma ser pela dor que aprendemos também. Na dor que vivemos sozinhos pode nascer raiva, que perpetua a dor, entretanto pode nascer genuínas compaixão e generosidade. Podemos compreender mais a dor do outro e desejar que não se repita com o mesmo sofrimento experimentado por nós. Assim a cura do outro se torna também uma autocura.
Contei também de um momento de insensibilidade da minha mãe comigo. Tanto no caso da minha mãe quanto no meu, são recortes que não representam a nós como um todo. Confesso que, como minha mãe, sou também muito insensível, muitas vezes. E em situações que envolvem saúde isso acontece com frequência, pois nunca tenho a devida dimensão do que aquilo representa para o outro, talvez por ter convivido desde a infância com o câncer do meu pai, então é como se outras ocorrências de saúde fossem "fichinhas" perto do que vivi. E também acho que precisei me blindar do medo, de forma que não alcanço com facilidade meu sentimento com questões que se relacionem com a experiência vivida com meu pai.
Minha mãe, em contrapartida, pode ser extremamente doce e sensível, pode ser carinhosa comigo e com muitos ao seu redor, adora presentear, conversar com estranhos e é capaz de viajar horas para dar um abraço em alguém que perdeu um ente querido. Mas tudo depende do dia, o que indica que ela pode estar acometida de algum transtorno de personalidade. Mas recusa se tratar, ou mesmo se consultar com alguém.
Para fechar
Esta semana me demorei um pouco mais escrevendo porque toquei em assuntos que me pedem mais elaboração. Mesmo demorando mais, acredito que não elaborei o suficiente e temo por ser mal interpretada. Mesmo assim arrisco, pois publicar ideias é arriscar-se, falar de si mesmo é entregar-se. Estou abrindo profundezas minhas que ainda estão em erupção. Que você possa ler com complacência e empatia, mais do que com julgamentos e distância.
Lembre-se que você pode clicar no coração abaixo para curtir o texto, pode compartilhar, enviar para alguém e também comentar. Tudo isso engaja a minha página e apoia a minha escrita.
Um abraço e até nosso próximo encontro por aqui!
Aline
Uau! A partir do momento que as redes sociais surgiram o ser humano foi colocado apenas uma edição limitada da vida onde é retratado apenas a parte boa da vida, aquela área que você se deu bem. Admiro você ter exposto aquele lado não tão bom, não tão bonito,… Seu texto mexe comigo também. Um pouco porque vivo também parte dessa história e sempre estou refletindo a minha autorresponsabilidade. Refletindo a Andreza como filha, mulher e desenvolvendo a minha maternidade no meu “auto maternar” já que não tenho filhos. Parabéns pela coragem! 😘❤️
Olá Aline!!! Ledo a sua Carta que compartilhada com Amor e sutileza nos torna humano e com uma alma sensível e cheia de afeto. Você é uma alma que cura outras almas que transborda amor, gratidão e esperança. Que a saúde da Nina seja restabelecida por Deus para gloria do Senhor. Abraços Fraternos.