CARTA ABERTA AO LEITOR
Eu sempre amei as cartas, pois são através delas que podemos confessar as palavras que não sabemos dizer. Sempre recorri às cartas, até mesmo sem data para enviá-las. Cartas eram minhas confidências. Uma confidência da minha solidão, ao mesmo tempo, o contraponto da minha alegria. É por escrever cartas que eu me revelo solitária, silenciosa e nostálgica, embora minha alma seja tão solar e entusiasmada. Eu me refugio nas palavras escritas e tenho essa vontade persistente de que encontrem olhos, para que eu possa me reconhecer para além de mim. Minhas palavras são pegadas na areia do tempo, mesmo que eu passe e que o vento as desfaça antes que alguém percorra meus passos para me encontrar, eu estive ali e escrevo para manifestar que existo.
Tenho uma vida muito pacata, recolhida, foi isso que ficou nos últimos anos. Um trabalho mais recluso, em casa, on-line e uma disponibilidade completa do meu tempo para a prioridade que se tornou minha família, em especial minha filha. A primeira infância dela foi muito intensa, como a de qualquer criança que ainda não tenha autonomia, requer muita atenção, dedicação, mas esse período tem passado. Em paralelo vivi o processo recente de profissionalização do colégio em que sou mantenedora, algo de que me orgulho muito em ter feito, pois acredito que tenha sido o legado mais grandioso que eu poderia deixar: a possibilidade de funcionar de forma independente das pessoas que lideram e centrada no propósito do que oferecemos e na diferença que nos propomos a fazer na vida dos alunos e famílias que acreditam em nós.
Com algum distanciamento do meu trabalho de tantos anos, tenho vivido, particularmente, um luto e um vazio. Necessário, pois é do mais profundo e escuro da terra que irrompe uma semente, com sua inerente potência, prenúncio da futura árvore. Assim me percebo nesta fase, como uma semente que ainda não irrompeu, escolhendo solo, viajando ao vento… Algo novo está por vir: a árvore, que nem mesmo a semente reconhece que já é. E tenho enfrentado tempestades. Fortes, rajadas de água e de ar. Tenho sido derrubada, mas me reergo a cada queda. Acredito que vêm daí a minha ausência, uma semana sem escrever. E conto parte do que me derrubou.
O susto
Na semana passada minha filha teve febre e estávamos medicando de 6 em 6 horas, mais ou menos, para tirar o desconforto. Não concordo em medicar febre, mas até hoje não tive argumentos suficientes para discutir com meu marido médico, então tenho acreditado que ele sabe o que faz e que entende melhor de saúde do que eu. No segundo dia, logo após dormir, ela teve uma dor abdominal tão forte que meu marido sentenciou que era para a levarmos ao Pronto Socorro. Achei precipitado, mas me vesti rápido e fomos. Lá ela foi para a emergência direto e vivi uma cena de filme, presenciando a seriedade com que a médica cuidou do caso para que ela fosse atendida rapidamente. Fiquei assustada. Ela pediu para chamarem um cirurgião e na minha cabeça de leiga achei que ela teria que passar por uma cirurgia de emergência. Com o susto, em vê-la chorando e os enfermeiros a paramentando, o cirurgião chegando para examiná-la, eu senti minha pressão cair, sentei no chão porque estava a ponto de perder meus sentidos e desmaiar. Isso já tinha me acontecido uma vez em uma situação que vivi com meu pai, em um hospital. Mas nesses 10 anos, que distanciam essas experiências, eu aprendi a me sentar no chão para evitar o desmaio. Da outra vez eu desmaiei e acordei deitada no chão. Ou seja, nessas horas, o chão é inevitável para mim.
Demorei um tanto para compreender que o cirurgião tinha sido chamado porque é ele que avalia qualquer dor abdominal, não porque minha filha seria cortada ali, em instantes, embora esta possibilidade ainda não tivesse sido completamente descartada. Após um ultrassom bom, pois eliminava algumas possibilidades ruins que tinham vindo a mente da pediatra, eu relaxei, mas ela me alertou "hoje você não saem daqui sem descobrirmos o que ela tem". Ela estava preocupada. E, se ela estava, eu também estava, mesmo me considerando a pessoa mais otimista do mundo para questões de saúde.
Depois de raio x e tomografia, por acaso, no exame que inspecionava uma provável apendicite, apareceu uma pneumonia bacteriana, a causa da dor abdominal, que pode ser comum em crianças com pneumonia. A médica nos contou que o caso era de UTI, ela estava com a frequência muito alta para a idade, mesmo dormindo. Após tantos exames e com a dor já controlada ela adormeceu. Entrei no túnel das incertezas, alternando medo e esperança. Minha filha estava adormecida na maca enquanto eu e meu marido reuníamos nossas forças para atravessar a noite, a madrugada e, principalmente, a incerteza.
Hesitei em expor os detalhes, assim como já tinha evitado dizer na semana anterior que eu me sentia duplamente vítima, primeiro de uma injustiça, depois de um infortúnio, ambos de ordem mais profissional, mas que doeram demais em mim. E ainda doem. Só então me lembrei que não hesito em partilhar alegrias e observações singelas sobre minha vida que, como a de qualquer outra pessoa, tem seus altos e baixos. Estou contando porque preciso que você, que está lendo, se lembre que não está só. De alguma forma, quando te conto o que vivo e, sobretudo, o que sinto, carrego você comigo. E você carrega minhas palavras com seu olhar. Esta é forma em que escritor e leitor se dão as mãos para caminhar juntos. Pois não há como não juntar-se a quem se revela com o grau de intimidade com o qual me exponho aqui. Somos uma legião muito pequena. Poucos olhos, poucos acessos. Se você me lê, sabe mais sobre mim do que qualquer outra pessoa, pois na escrita é onde mais posso ser quem sou. Guarde assim o meu segredo: minha vida é, literalmente, como um livro aberto… Como esta carta aberta. Ao mesmo tempo, espalhe minha mensagem, para que ela encontre outros lares e outros olhos para morar, além desse, em que vive tão só aquilo que escrevo.
P.S.: Após alguns dias na UTI minha filha respondeu bem ao antibiótico e foi para o quarto, teve alta quase uma semana depois de darmos entrada no P.S. Meu mundo ruiu e se reergueu com ela às vésperas do Dia das Mães.
Esta semana adoraria ter escrito também sobre:
Maternidade (em geral e a minha)
Minha relação com a minha mãe
a Rita Lee e sua comovente passagem com tantas histórias, vídeos e músicas
Este foi o possível. Uma prova de que sou falível com meus desejos, mas que posso realizar o que me proponho em uma outra medida, não a ideal, mas a real. Isso é de uma humildade que você nem imagina. Por querer o ideal já deixei demais de fazer o possível. Maturidade é se contentar e fazer.
E você? Pode ser dispor a fazer algo de possível esta semana?
(Ainda que não seja o ideal)
Ser humilde é também ser um tanto quanto generoso e oferecer ao mundo aquilo que somos capazes de oferecer, ao invés de reter e esperar o momento certo.
Dicas
Livro gracioso de Valter Hugo Mãe: A minha mãe é a minha filha
Originalmente uma crônica. As ilustrações estão lindas e a linguagem dele só embeleza a descrição da relação com sua mãe.
Boa semana!
(Lembre-se de curtir o texto, compartilhar e se inscrever, agradeço antecipadamente por esta forma gratuita de apoiar a minha escrita e o meu conteúdo.)
Beijos de luz,
Aline***
Olá Aline!!! A vida é algo extraordinário e a amizade mesmo a distancia quando encontra ressonância daquilo que é belo e justo ecoa na eternidade. Na semana passada quando não recebi a sua Carta pensei deve ter acontecido algo fora do normal e fiz uma prece para você e a sua família, ledo a sua Carta vejo que não importa a distancia o importante é o Amor de uma boa amizade. Que Deus abençoa você e a sua família. Abraços fraternos!!!
Que lindo Line. A vida é mesmo maravilhosa, um susto pode nos tirar o chão mas também nos faz valorizar os pequenos momentos e também valorizar a própria vida!