Os fins e recomeços
Sobre os acontecimentos deste último dezembro e como reverberaram em mim. Sobre escrever e se emocionar. Sobre viver e sobre morrer.
No final de dezembro fui a um velório de quem eu não conhecia. A mãe da amiga da minha cunhada. Um tanto distante de mim, sem nenhuma linhagem sanguínea, lá chorei a brevidade desse tempo que tão pouco é encarado ou percebido. O nosso tempo. Aquele experimentado por um único par de olhos, e pisado por um único par de pés: o meu. Ou o seu. Ou o de outro qualquer. Tantos ali. A filha que sorri nutrida pela sensação serena de que fez de tudo que estava ao seu alcance, declarou o amor, ouviu, acalentou. A irmã que fala em voz alta algumas últimas palavras em homenagem. Uma pequena legião de amigos dos filhos que os revê, os abraça e chora junto em silêncio. E a morte, ali, como que deitada, entre as coroas de flores.
Mais nova esse meu corpo sentia menos o tempo, é por isso que para algumas pessoas envelhecer é emocionar-se. E também dar-se conta de que não há eternidade para o corpo e de que sempre teremos alguma dúvida íntima sobre a perenidade da alma. Não sei, parece que nos últimos dias do ano acertam-se as contas com o céu, nem todos viram o ano e aqueles que ficaram até bem próximo da virada não a ultrapassam se assim não era para ser.
Meu pai faleceu em um dezembro também. Muitas pessoas célebres, só neste último ano um rei, assim coroado e reconhecido mundialmente, pelo que foi com sua técnica com a bola, e um papa. Sinto que é como uma gigante vassoura varrendo as almas que já brilharam o suficiente. É também como se ainda me faltasse brilhar um pouco mais a preciosidade que sou, já que não fui varrida. Ainda que esta preciosidade, em mim escondida, eu desconheça um pouco. Ainda que não tenha escrito meus planos para o ano ou para a década. Mesmo sabendo que sem planejamento se avança menos do que se poderia alcançar.
Interrompo a escrita desta newsletter para passear um pouco, perto da casa onde estou dormindo esses dias. Tenho meu marido ao meu lado e conto para ele que choro enquanto escrevo. E que chorar não significa que o que escrevo irá enternecer outras pessoas como a mim, mas que somente se este choro chegou a mim primeiro ele poderá se espalhar e, quem sabe atingir alguém. Nem sempre o que escrevo transmite a riqueza do que eu sinto, choro pelo que sinto e não pelo que leio ao escrever. E você, sente meu choro enquanto lê?
Choro em rever meu próprio choro, esse que recém-redescobre a brevidade da vida na previsibilidade da morte, em um velório. Choro porque escrever sem sentir ou derramar lágrimas é escrever sem alma, sem espírito.
"Escreve com teu sangue e verás que sangue é espírito". (NIETZSCHE)
Frase que gravei quando comecei a ler "Assim falou Zaratustra" em 2004, e nunca terminei o livro. Hoje, conhecendo um pouco mais sobre o autor, bem pouco mesmo, mas o suficiente para compreender a frase à luz do que Nietzsche expressou em seus livros, diria que nesta frase está condensada uma crítica à apologia ao espírito e uma ode à carne, que sangra, envelhece e morre, que é tão passageira, mas que por si só está repleta de espírito.
A mim, que escrevo, com lágrimas, sangue e veias e a você que lê, com olhos, retina e pulso: estamos vivos! O calendário acaba de virar uma nova página, tudo que nos resta é preenchê-la de vida. E verás, vida é sagrada. E verás que vida é espírito! Talvez seja o que vivamos aqui que nos conceda a nossa eternidade possível. Pode ser que não sejamos um rei, uma rainha, ou um papa, mas quantas vidas, além de nós mesmos, teremos tocado quando chegar a nossa despedida? Teremos tocado a nossa própria?
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Você é tão necessária!!!!!
Te amo
Que Deus continua tocando a sua alma para que você nos toque com as suas palavras bem escrita e emocionada. Gratidão!