Esta semana algo maravilhoso aconteceu. Uma amiga me chamou para celebrar o seu casamento, ao lado de uma outra amiga. AMO casamentos, relacionamentos, o amor em todas as suas formas e expressões. Bem essa semana tinha dito para minha orientadora da Formação em Psicanálise que iria mudar o tema do meu trabalho de conclusão. Até então eu tinha pensado em falar sobre o príncipe Harry e seu relacionamento com a mãe, a princesa Diana, por achar que seria algo que depois eu poderia publicar, já que tanta gente é curiosa com a família real. Após comprar a sua biografia e tentar assistir seu documentário no Netflix, eu me dei conta que eu não tenho curiosidade sobre o príncipe Harry. Não passei das primeiras páginas e nem terminei o primeiro capítulo do documentário. Até quero ler e assistir mas não me deu vontade agora. Foi quando meu marido me deu um toque: "o seu tema de estudo precisa ser algo que VOCÊ goste". Após chorar assistindo diversos vídeos sobre a história de amor de Rita Lee e Roberto de Carvalho, inclusive a entrevista dele para o Fantástico após o falecimento de Rita, pude me lembrar da minha paixão por histórias de amor e o quanto esse é, provavelmente, um dos meus temas favoritos da vida. O que nos leva a amar alguém? O que o relacionamento revela sobre nós mesmos? O quanto a maturidade enriquece uma relação? O quanto o amor pode estar à serviço de nos fazer evoluir e, infelizmente também, padecer? Enfim, tudo sob uma ótica um pouco mais otimista, que é a minha visão. Apesar de enviesada.
Já escrevi muito por aqui sobre o quanto a nossa visão é moldada por nossas experiências e percepções, sobretudo as vividas na infância. Veja, falei experiências e percepções, pois além de experiências únicas que passamos, é a percepção que temos delas que delineia quem somos. Isto é ainda mais particular que a experiência em si. Cair pode ser doloroso ou divertido, depende da criança que cai. Apesar da queda também ter seu impacto, mas pensemos na situação hipotética de uma queda sem muita dor objetiva, como são a maioria das quedas, quando isso acontece, algumas crianças riem e se levantam para, na sequência, caírem de propósito para rir de novo. Outras se envergonham, outras choram de dor… A percepção sobre a queda é particular e influenciada também pelo meio.
Eu percebi a experiência do casamento dos meus pais de forma muito positiva. Achava meu pai romântico, agregador da família e fiel. Minha mãe me influenciou a adorar as histórias de amor dos filmes e bem cedo este se tornou meu ideal de relação e de futuro: reviver a minha família da infância. O difícil é encontrar alguém que tenha tido a mesma marca ou impressão, pois como falei na newsletter da semana passada, a nossa impressão de mundo é como uma tatuagem impressa na nossa pele ou nos nossos olhos. Vemos tudo através daquelas marcas iniciais.
Quando eu e meu marido intencionamos casar e ritualizar esta nossa escolha, lá em 2010, 2011, pensamos que gostaríamos de fazer isso segundo nossas próprias verdades, já que não frequentávamos nenhuma religião. Chamamos nossas irmãs para serem as sacerdotisas e marcamos algumas reuniões em que cada um de nós pesquisaria e traria textos sobre amor e relacionamentos que faziam sentido para nós. Lembro-me que reunimos poesia, música (algumas compostas por nós, eu e Paulo) e prosa, assim fomos montando uma colcha de retalhos que tinha tudo a ver conosco, nossa história e nosso amor. De meu autor preferido (Rubem Alves), até Fernando Pessoa (que nós dois amamos), até textos diversos, intercalados por nossas falas um para outro e por canções, criamos um ritual único e que acaba sendo minha referência agora que fui chamada para ritualizar o casamento da minha amiga.
Vou contar como foi. Nosso "altar" tinha os quatro elementos: terra (simbolizado pelo sal grosso), fogo (velas), água e ar(simbolizado por incenso). Casamos na primeira lua cheia da primavera, um período em que toda a natureza floresce, árvores "ejaculam" flores e muitos animais acasalam. No hemisfério norte maio é primavera, o que provavelmente explica o fato de ser o mês dos enlaces. O primeiro texto do casamento foi escrito pelo meu marido e equiparava aquele momento vivido por nós com o experimentado por toda a natureza em nosso planeta, mesmo antes que existissem humanos caminhando sobre a Terra.
Depois da entrada do noivo ele recitava um poema que sabe de cor desde adolescente e em que Fernando Pessoa fala sobre relacionamentos através do mito grego Eros e Psique poetizado e em tom de conto de fadas. A seguir o poema em itálico, que recomendo você ler primeiro pulando meus comentários em cada estrofe. Depois faça uma segunda leitura refletindo comigo:
Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.
Uma nítida associação à Bela Adormecida
Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.
Aqui o poeta revela que tentar vencer o mal e o bem é estar preso, e que o caminho certo não é necessariamente aquele que leva até a princesa, mas aquele em que ela vem. Isso diz muito!
A Princesa adormecida,
Se espera, dormindo espera.
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.
Nesta estrofe há uma alusão a uma vida vivida de forma superficial e automática, de alguém que dorme diante da própria realidade e sonha, ao invés de viver, o que para o poeta é o mesmo que a morte e um grande esquecimento ["fronte esquecida"] de si mesmo.
Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém.
Precisamos lembrar que Psique, do grego, significa alma e Eros, amor. Nesta estrofe o poeta diz que o Amor desconhece seu intuito, que a Alma ignora o Amor, até o momento. E que, para o Amor, a Alma é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino –
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.
Aqui uma outra camada, uma referência a busca espiritual (busca pela Alma), que faz existir a estrada. Neste momento é como se o Amor, mesmo sem tino, estivesse sempre em busca da Alma, mesmo que ela durma encantada.
E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E, vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.
Fernando Pessoa não é lido até hoje por acaso, sua poesia está repleta de referências a uma mística que transcende a beleza de suas palavras e que, aliás, por si só, já seriam grandiosas literariamente. Quando diz "obscuro", logo somos remetidos à sombra, aquela que habita cada ser e que é mais verdade do que o que mostramos. A sombra, sem a qual somos falsos e cuja qual precisamos atravessar para chegarmos a nossa essência, a Alma.
E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão , e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.
Para mim este é um dos poemas mais profundos, belos e simples já escrito. Ele nos fala do quanto relacionar-se implica o encontro anterior consigo mesmo (já que o infante percebe que a princesa que tanto buscava era ele mesmo, sua própria Alma), ao mesmo tempo, o quanto nos projetamos naqueles que amamos e nos relacionamos. São todos espelhos nos quais vemos a nós mesmos.
Então o noivo, na minha cerimônia, levantava o braço e apontava para a escada de onde desci até o altar, ao ar livre. Eu surgia, meio que de cima de uma montanha, com uma grinalda, como que acordada naquele momento, como sendo minha própria Alma, indo ao encontro do Amor, Eros, representando o caminhar de nossas almas ao nosso próprio encontro. Nossas irmãs lavavam nossas mãos com sal grosso e água, dissecando suas palavras e bençãos evocando a limpeza de nossas sombras que deveriam ficar no passado para que pudéssemos nos encontrar mais livres, após atravessar o que houvesse de “obscuro” em nós.
Então vinham os textos de nossas irmãs, falando sobre o amor que nasce da verdade e da revelação. O oposto do senso comum, em que acredita-se que somente o mistério mantém o desejo e o amor. "Não há limites para a revelação de uma alma a outra", portanto não precisa ser mantido nenhum mistério intencionalmente, ao contrário, o encontro acontece quando há revelação, inclusive da sombra, já que essa revelação não tem fim e só intensifica a magia do mistério. Sabe aquela máxima socrática "quanto mais sei, mais sei que nada sei"? Vale para o outro, ou seja, para aquele que amamos e para nós mesmos. A descoberta e autodescoberta são infinitas, nem uma vida inteira seria suficiente para encerrá-las. Então o nosso ritual de casamento celebrava esta entrega que desejávamos e ainda desejamos conceber. Mal sabíamos o que ainda viria pela frente a esse respeito. E não posso falar por meu marido, mas eu ainda continuo interessada em conhecê-lo anos e anos depois, até porque não somos os mesmos.
Nossas alianças foram trazidas por nossas mães, um gesto de que elas abençoavam nosso novo elo estabelecido. Minha mãe deu a aliança do meu dedo ao meu marido, e a minha sogra deu a aliança do dedo dele a mim. Os votos do meu marido foram uma música que ele compôs e cantou para mim. Os meus uma poesia para ele. Por fim, ao invés de responder a pergunta de um terceiro, nos olhamos nos olhos e nos perguntamos "você quer casar comigo?" e esta frase consentida é, para mim, o casamento, o compromisso, a consumação máxima do rito de casar.
"Quero!"
"Quero!"
E quero foi mais completo que dizer "sim", pois é uma ação, um verbo.
"No início era o verbo"
E esse foi apenas o nosso começo.
Obrigada pela sua leitura! Fico tão feliz quando você chega até aqui.
Uma semana repleta de amor e inspiração para você.
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Beijos de luz,
Aline
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Olá Aline!!! Que historia linda de amor e cheia de significado para o casal. Que vocês sejam muitos felizes e transborda felicidades para além das estrelas. Abraços fraternos.
Aline, que espetáculo de texto! Muita sensibilidade. Você arrasa mt! Uma das minhas escritoras favoritas. Att Igor Granna