Querido leitor,
Em 1997, eu era uma irmã mais velha que convivia demais com as mais novas. Eu com 18, elas com 16 e 15 anos. Naquele inverno minha irmã mais nova começou a namorar. Durou pouco, mas o suficiente para termos visitado juntas a casa do seu então namorado e conhecer a irmã dele, uma adolescente de 14 anos, que transitava com desenvoltura entre os ligeiramente mais velhos, inclusive eu, no caso. Ela tinha segurança e naturalidade, o riso saía tão fácil quanto o discurso sobre qualquer assunto e eu sempre me perguntava internamente o que havia de diferente nela que a fazia chamar tanta atenção, inclusive a minha, e que também causava tanto prazer e alegria quando ela estava por perto. Naquela época, havia chegado à conclusão que era a presença, no sentido de inteireza. Quando estávamos, eu e minhas irmãs, com ela, era como se não existisse nada além de nós, os próximos compromissos, as outras pessoas do mundo, tudo era esquecido. Ela vivia ali, inteira, naquele momento. Isso a fazia se atrasar, mas sempre com calma, como se fosse algo natural se atrasar, pois o próprio atraso também era vivido sem pressa, com presença e alegria. Tudo ficava muito divertido assim, tinha cores, as suas cores. Acontecia uma certa elevação no estado de humor, não só o dela, mas o de tudo ao redor. Após o término do namoro da minha irmã, não me lembro exatamente como, ela nos procurou. Acho que tinha nos reconhecido, pelo tecido invisível com o qual somos revestidos internamente e, mesmo sem comparação objetiva, por ele reconhecemos a nossa semelhança com a dos amigos verdadeiros, antes mesmo que a amizade se inicie. Podemos chamar esse tecido de essência. Algo além das nossas preferências e escolhas, uma parte central nossa, menos transitória, mais permanente, que une pessoas diferentes, porque a elas convém estar juntas, ainda que caminhem separadas.
Jamais esqueço de uma frase do poeta Gibran Khalil Gibran:
"Amigo, você não é bem meu amigo, seu caminho não é o meu caminho e, mesmo assim, andamos de mãos dadas".
E cada um que lê este texto pode ser capaz de se lembrar quem são os amigos que, além das mãos, oferecem seus ombros, nos carregam no colo, ou são carregados. E, para isso, não precisam que trilhemos idênticos caminhos e, nem mesmo, que os encontremos em nossa estrada.
Outro fato pertinente a esta história é que, quando somos muito jovens, não temos dimensão da raridade dos encontros, sejam os amorosos ou os de amizade. O mundo adiante é tão repleto que parece que encontraremos tal profundidade de afinidade de alma repetidas vezes, o que não acontece. A real importância de cada acontecimento se toma com o passar dos anos, quando eles já se fazem passado em nós e já não podem mais ser intercedidos.
Como estava contando, ela nos reconheceu, manifestou de forma clara, não sei se pessoalmente ou por telefone, que nos observava e nos reconhecia, éramos amigas, mesmo antes de ser, éramos comuns umas às outras. E, neste caso, o que tínhamos de comum talvez fosse, justamente, ser bem diferente dos outros, termos um alto grau de autenticidade e diferenciação dos demais, no comportamento, no jeito de se vestir e de se portar.
A amizade intensa durou anos, um pouco interrompida por um intercâmbio dela, repleto de extensas cartas que nos escrevíamos. Então a vida de cada uma foi tomando distintos rumos. A intensidade preliminar ficou branda, quase escassa, mas o querer bem estava intacto.
Anos depois, quase 20, em uma viagem de busca, a imagem desta amiga me veio à mente. Por algumas conversas que tivemos durante os anos de distância, sabia que aquela cidade tinha seu significado a ela. Aquilo que eu estava vivendo me fazia lembrar muito de seu rosto. Horas mais tarde, como em um passe mágico, ela apareceu diante de mim, o mesmo sorriso e brilho vívido, uma busca para compartilharmos, no mesmo espaço e tempo. Tanta alegria. Ainda morávamos em cidades diferentes, ela com sua característica um tanto nômade, desprendida, sem casa fixa, ou com o mundo inteiro como casa. Eu aterrada em cada pessoa que amo, adorando sempre ter para onde voltar. Poucos meses depois eu engravidei, meses depois ela. Quando podia estar perto ela me visitava, nossos bebês brincavam, mas suas viagens eram constantes, a frequência em que nos vimos deve ter sido no máximo de 2 vezes ao ano. Daí veio pandemia e, finalmente, esse ano, 2023. Aliás "finalmente" somente para este texto, pois essa amizade ainda renderá muita história, assim torço.
Ela me visitou e me chamou para visitá-la em outro estado, quem sabe no feriado de carnaval. Recusei. Então ela me ofereceu uma casa sua em outro estado, mais próximo, uma casa da qual recém se mudou e que empresta para amigos. Bem próxima de uma praia linda, com um terreno com árvores e um balanço. Irrecusável.
Marquei a viagem já suspeitando que seria uma experiência especial, depois de tantos anos de amizade, entrar, pela primeira vez, na casa da minha amiga de adolescência. Embora eu já fosse adulta quando a conheci e, em geral, me refira a ela como amiga de infância. Entrar ali sem a presença dela, mas com ela espalhada por toda parte tinha uma força. Ver seus quadros e obras de arte, suas escolhas de decoração, suas fotos de fotógrafa profissional. Os múltiplos e singulares puxadores de portas de armário e gavetas, em formato de flor, decorados com espelhos, ou imitando uma pedra turquesa bruta. Cremes e sabonetes especialmente aromáticos, cheirosos e únicos em cada banheiro, móveis rústicos entre papéis de parede estampados, coloridos e janelas com vista para o verde, além de redes e ganchos para esticá-las em cada cômodo ou varanda. Tudo devidamente combinado, descombinando, intrigando. Leva-se um pouco mais de tempo reparando em cada detalhe de sua casa, como também é fácil demorar-se um pouco mais a notando, desde quando a conheci.
Tive dias e dias para rever a nossa amizade, lembrar de sua coleção de perfumes em miniatura substituída pelos óleos essenciais, olhar as fotos de seu casamento, em que ela e o marido parecem saídos de um conto de fada celta, míticos, mostrar os brinquedos de madeira do seu filho para minha filha criar bonecos com imãs. Os botões do jardim sempre são visitados por borboletas e beija-flores. Eu a visitei. Ela não estava. Eu já sabia disso. O que não sabia é que ela me visitaria tanto também.
Esta semana além do meu áudio amador, em que leio a newsletter e assim posso ser ouvida, além de lida, quero partilhar um presente em forma de texto. Rubem Alves está entre meus autores preferidos. E de todos os textos dele, acredito que este, sobre amizade, é o meu preferido: Uma árvore para Ladon Sheats
Nunca consegui ler sem me emocionar. Inclusive neste texto Rubem cita o livro “A montanha dos gansos selvagens”, também de sua autoria, que é o livro infantil mais triste que conheço, porém está entre os mais lindos também. É uma história sobre velhice e morte que também me toca demais.
Desta forma me despeço desta carta a você, leitor, desejando uma semana maravilhosa, com tantos recomeços, já que após o carnaval estamos apenas iniciando tudo!
Beijos de luz,
Aline***
P.S.: Aqui me compadeço também com a recente tragédia vivida no litoral norte de São Paulo. Triste por acometer sobretudo famílias carentes de forma tão brutal e imprevisível. Caso tenha algum conhecido ou parente envolvido envio meu abraço a você. Estou aqui caso deseje conversar.
Olá Aline, como é suave e agradável ao iniciar a semana receber esta Carta ao leitor que nos trás tanta inteireza em sermos amigos mesmo que seja virtual porque dá para sentir a energia e do puro amor. Que você e a sua família receba em dobro este sentimento tão nobre de seu coração. Deus te abençoe. Abraços fraternos da minha familia.