Muito além de uma viagem
Sobre os dias que vivi com minhas irmãs depois de anos sem uma convivência tão próxima, a poesia dos dias, as lembranças e algumas dicas...
Após 2 semanas de ausência e tendo vivido e revivido intensamente o que aconteceu, volto a te enviar as minhas palavras. Elas vão contar que a minha ausência de escrever foram preenchidas por muita presença.
Viajei com minhas irmãs após anos em que não ficávamos as 3 juntas sob o mesmo teto. Desta vez com nossas filhas. Fomos muito grudadas na infância e adolescência. Contei um pouco na newsletter passada. A idade adulta distanciou nossos corpos e em alguma medida nossas vidas e destinos, mas a origem fica intacta. Todos podemos mudar o futuro, mas o passado está cravado em pedra e molda os dias vindouros. Estar com minhas irmãs é rever a forma em que fui forjada. Ainda durante a viagem comecei a escrever o texto que se segue.
Não cabe no papel tanta potência. Olho em volta e estou no ponto em que meu passado e meu futuro se encontram. A infância e a velhice estão à espreita. De um lado minhas irmãs. Mais novas que eu. As que vi nascer e as que sinto que criei, mesmo sendo eu também uma criança, quando elas chegaram. Na outra extremidade minha filha, que busca a mão de suas primas mais velhas para caminhar, que correm uma na direção da outra para se abraçarem em cada encontro dos desencontros que uma ida ao parque proporciona. É tanta vida jorrando, acontecendo, nem mesmo as fontes pelo caminho tem essa força. Tantos ritmos que precisam se equilibrar e histórias divertidas que nossas bocas contam. E rimos. Rimos muito porque não há tempo e espaço capaz de explicar mil lágrimas contidas. Então não explicamos nada. Escolhemos sentir na pele mais toque, um sanduichinho que chega pela manhã porque me esqueci de comer arrumando mochilas. Minha irmã mais nova sabe e cuida de todos. Depois penduro todos os pesos, de todas as pessoas, no carrinho da minha filha e carrego tudo sem sentir. Carrego tudo sem sentir. Mas amando. Tanto e muito que não cabe. Sempre todos esperam a minha revista* que demora, porque estou de vestido longo, ou porque a mochila é grande, ou porque tenho cara de árabe, não sabemos. Em todos os parques a minha revista é a mais demorada. E riem. E aguardam. Depois rimos juntos e corremos para a próxima atração. Às vezes nos provocamos como adolescentes. Mas nos doamos como avós. Aliás há uma avó no nosso grupo. Ela me confessa sua ansiedade que chegou com a idade e que é contornada com coragem. As coisas que eram corriqueiras se tornam maiores, porque apesar de conhecer bem o mundo e a si mesma, seu organismo já não responde da mesma forma aos estímulos, em uma velocidade bem lenta o corpo vai se fragilizando e é preciso ter consciência de seu estado para cuidar-se, agir na medida. Uma medida ainda desconhecida que vai sendo calibrada com alguma ansiedade. Ela é minha companhia quando voamos lado a lado, cada uma em um ikran, aquele predador voador que vive em Pandora, o planeta do filme Avatar. As atrações mais novas procuram reproduzir a experiência exata dos filmes que a inspiram. O que na minha infância eram apenas passeios de barco ou teleférico por cenários encantados, atingem seu ápice quando reproduzem a sensação de um vôo e a realidade virtual de um planeta completamente criado por computação gráfica.
Coleciono imagens, não das atrações, mas das cenas que a minha emoção captou. Um riso, um olhar, a minha lágrima sempre pronta. E é impressionante como boa parte dessas imagens aconteceram nos parques. No cansaço, na chuva que anunciou que viria, quando tivemos que dividir abrigo, e também lanchinhos ou garrafas d'água. "Pode tomar", "tudo bem", "quer dividir?"
Quer dividir o que? O sanduíche? A água? O tempo? A vida? Tudo isso! Sim. Já estou dividindo. Meu coração também, um pouco do seu… Tudo dividido. A casa, a cama, o shampoo, as roupas… Essa eu quero! Pode ficar. Sério? Então te pago. Você sempre generosa.
E assim uma roupa virou dela, uma bota dela virou minha, um creme, dela, a jaqueta nossa, te devolvo no final da viagem. De quem é essa meia? Fomos 8 pessoas dividindo a casa, o carro, os dias, as horas… Depois de tanto tempo em que nossas vidas foram repartidas. E repartir é partir de novo. Partimos umas das outras e agora nos dividíamos entre nós, no cuidado das crianças, nos descuidos, desatenções e atenções um com o outro. Uma quer comer fora, outra quer voltar para casa e descansar, uma quer aproveitar o dia todo fora de casa, outra sente fome, outra sente sono e o mundo tem mil possibilidades e mil renúncias em 24 horas. Mesmo que elas, as horas, se repitam, elas acabam também. E quando o fim da viagem se aproxima temos a consciência que na juventude não temos diante da vida. A viagem chegará ao fim. Um ensaio de que um dia a vida também chegará. Então uns se apressam para que caiba mais vida naqueles dias, outros se entregam ao que vem e, outros ainda, já sonham com o que virá após a viagem. Saudade de casa, alegria de voltar, vontade de ficar, tudo se mistura. Todos se misturam. E precisamos fazer caber na mala, a bagagem, aquilo que levaremos de volta. E vamos nos deparar com a realidade de que nem tudo cabe, teremos sempre que abandonar uma parte, não se pode levar tudo. Escolher o que deixaremos, priorizar o que desejamos guardar, aceitar o que está incrustado demais em nós e é impossível deixar. Seguimos com nossos embrulhos mais repletos de lembranças e, ainda assim, mais leves que antes.
A newsletter passada foi sobre a minha viagem de ida, esta, sobre a minha viagem de volta. Acabei me lembrando da Odisseia, que conta a volta de Ulisses para Ithaca, após a guerra de Troia. Uma viagem que levou anos e o transformou. O vídeo, que compartilho abaixo, conheço há muito anos e adoro quando me lembro novamente dele e posso rever. É um poema belíssimo de Konstantinos Kaváfis, na voz de Sean Connery, chamado Íthaca, que fala sobre essa viagem. Assista e ouça!
Acabei procurando o poema em português e o encontrei em 3 versões neste site. Achei o máximo! Mas, para mim, ainda que a beleza esteja em todos, nenhuma se compara a experiência de ouvir a narração de Sean Connery do vídeo acima.
Dicas da semana
Um filme
A comédia romântica alemã Em uma ilha bem distante, está disponível no Netflix, e, coincidentemente, também inclui a viagem da protagonista para uma ilha na Croácia para conhecer a casa que recebeu de herança de sua mãe. O quanto essa viagem a transforma e a faz refletir sobre sua própria vida também é um convite para refletirmos sobre a nossa. Quando fica distante de sua rotina é que percebe mais acerca do mundo e de si mesma.
Isso me remeteu a seguinte frase de Saramago e que já fica na sequência como dica de livro.
É preciso sair da ilha para ver a ilha. Não nos vemos se não saímos de nós. (José Saramago)
Um livro (um conto):
É um livro singelo, bem curtinho, pois é apenas um conto. Excelente porta de entrada para quem nunca leu o autor e também uma doçura e frescor de seu talento, mesmo para quem já o conhece. Palavras de um mestre nunca são em vão. É desse livro também um outro trecho de genialidade:
“Gostar é provavelmente a melhor foram de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar”
Ah! Lembre-se que você pode apenas curtir a leitura. E se estiver inspirado fazer algum comentário. Vou adorar ter esse retorno.
Desta forma, desejo a você uma semana maravilhosa! Que a sua viagem pelo mundo permita a viagem que você é capaz de fazer em si mesmo, ou si mesma. Que você possa enxergar, além das camadas dos acontecimentos, o invisível que nos espreita, o espelho que nos retém e nos devolve. E quando você for "capturado” [pelos acontecimentos], que minhas palavras possam devolver você a tudo de mais elevado que você é, e que, nesta forma, você possa viver tudo que acontecer.
Boa semana!
Aline***
Olá Aline, gratidão por compartilhar a sua viagem conosco e convívio com a sua família. Abraços fraternos.